Eu queria acertar a cor. Depois de comprar meu apartamento, uma das coisas mais importantes para mim era reformar o sofá da minha avó, para manter essa memória dela comigo por perto todos os dias. Ela sempre teve um ar de Coisa Mais Linda, sabe? Toda a beleza e o glamour, os brincos grandes de pérola e lenços perfumados, mas também toda a força da mulher que criou meu pai sozinha.
Quando ela se foi e passamos dias arrumando tudo o que era dela, eu lembro bem de pensar em duas coisas: por que eu demorei tanto para perceber o quanto éramos parecidas? Por que ela nunca trocou esse sofá cor-de-rosa?
Ninguém entendeu nada, mas eu queria guardar o sofá para mim. E o meu apartamento só veio três anos depois disso, mas consegui. Eu não queria manter o couro, mas queria acertar a cor. E na hora de reformar, como boa libriana que sou (e que ela também era) fui e voltei em diversas cores de tecido que poderiam parecer idênticas aos olhos dos outros, mas não para mim.
É estranho como a gente se apega às coisas materiais, mas eu ainda tenho uma memória fotográfica de criança, do apartamento dela e de como a luz do sol da manhã batia no sofá enquanto nós brincávamos de João e Maria durante as férias. Eu era a Maria, ela era a bruxa e eu sempre dava um lápis ao invés do meu dedo para dizer que eu estava muito magrinha… e que ainda não era o momento de a bruxa me cozinhar.
Aqui em casa o sol da manhã bate do mesmo jeito no sofá e eu não sei dizer se me aqueço de dentro para fora ou de fora para dentro.
Essa noite, enquanto eu me ajeitava no sofá, justamente enquanto assistia a série que tanto me faz lembrar da minha avó, o braço dele afundou. E descobri uma infestação de cupins. Sempre detestei insetos.
A quarentena tem levado muita coisa embora e sinto que preciso me transformar a cada semana. Herdei a vaidade da minha avó, mas não pinto as unhas desde março. Precisei jogar fora a vontade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Perdi a vontade de controlar cada minuto dos meus dias e tenho me deixado levar um pouco mais. Joguei pelo ralo a mentira que eu sempre me contei sobre não saber cozinhar e me peguei buscando receitas e passando bastante tempo na cozinha. Descobri ali um jeito de silenciar os meus pensamentos e focar em uma coisa só por vez.
Eu tenho me despedido aos poucos dessa minha versão que não me cabe mais, mas não esperava ter que me despedir desse sofá-abraço-de-vó que é o coração do meu lar. Não esperava ter que comprar outro às pressas e à distância, sem saber exatamente o tom, sem poder testar o conforto.
Já existem tantas memórias novas nele desde que a gente chegou aqui. Meu coração tá apertado porque ele vai embora hoje.
Será que eu acertei a cor?